Defeitos de argumentação I

Defeitos de argumentação (I)


A escrita é uma das modalidades de linguagem, com caracte¬rísticas típicas, diferentes, por exemplo, da modalidade oral. Uma das diferenças entre a conversação e a escrita é que, nesta, o interlo¬cutor não pode intervir no momento da produção lingüística e solici¬tar explicações sobre aquilo que está sendo dito.

Por isso, na escrita, tudo deve ser dito com muita clareza pa¬ra que o leitor possa compreender o que se quer dizer. Salvo em ra¬ríssimos casos, ninguém escreve para si mesmo, mas para um interlo¬cutor com a intenção definida de persuadi-lo e de obter sua adesão prática, intelectual ou afetiva. Partindo do pressuposto de que, na escrita, o interlocutor está ausente e não pode fazer interrupções pa¬ra obter esclarecimentos, o texto escrito deve ser o mais autônomo possível não só no que diz respeito à clareza e à quantidade de infor¬mações necessárias como, principalmente, no que toca aos procedi¬mentos argumentativos.

1) Emprego de noções confusas

Para entender esse tipo de defeito argumentativo, é necessário considerar que, na língua, existem palavras com uma extensão de significado muito ampla. Não sendo palavras de sentido especializa¬do, ocorrem nos mais variados contextos, cobrindo noções díspares e até contraditórias. Trata-se de palavras que, para não prejudicar o esquema de argumentação, devem vir previamente definidas por¬que, se não o forem, podem servir de argumento para um ponto de vista e para o seu contrário. Pense-se, a esse respeito, no uso que o mundo contemporâneo tem feito da palavra liberdade:



- Reagan, em defesa da liberdade dos povos latino-americanos, so¬licitou ao Congresso americano verbas para apoiar os movimentos contrários ao governo da Nicarágua;



- Daniel Ortega, presidente da Nicarágua, em nome da liberdade dos povos latino-americanos, solicitou, na Onu, sanções contra os Es¬tados Unidos pelo apoio que vêm dando aos movimentos contrários ao governo revolucionário.



Como se vê, o mesmo conceito está sendo utilizado como argu¬mento para duas atitudes diametralmente opostas: uma dos Estados Unidos contra o governo da Nicarágua; outra do governo da Nicará¬gua contra os Estados Unidos.

O que é que permite essa diversidade no uso de uma mesma pa¬lavra? É exatamente o caráter amplo e vago de sua definição.

Essas considerações levam-nos a concluir que palavras desse ti¬po precisam ser definidas antes de serem exploradas como argumen¬to para apoiar qualquer ponto de vista. Do contrário o argumento se esvazia e perde o seu poder de persuasão.

Na língua, existem muitas palavras pertencentes a esse tipo de repertório: liberdade, democracia, justiça, ordem, alienação, massi¬ficação, materialismo, idealismo, etc.

Convém ainda ressaltar que, no domínio dessas palavras de sig¬nificado vago ou denotadoras de noções confusas, existem umas que são dotadas sempre de um valor positivo (paz, justiça, honesti¬dade, democracia) e outras que sempre vêm carregadas de um valor negativo (guerra, injustiça, desonestidade, violência, autoritarismo).

As pessoas das mais diferentes ideologias não ousam contra¬riar o consenso das opiniões e usam esse tipo de palavras da manei¬ra mais elástica, seja para enaltecer os princípios que defendem, se¬ja para atacar os princípios da facção contrária. Mas quase nunca entram em acordo quanto ao exato sentido das palavras.

Os alunos, muito freqüentemente, em redações, abusam desse tipo de palavras e; sem o devido cuidado, lançam mão delas para apoiar suas afirmações com argumentos de fundo moralizante, repe¬tindo, sem elaboração própria e sem critério, expressões do senso co¬mum destituídas de qualquer consistência.

Frases como as que seguem podem dar uma dimensão do que seja essa exploração de palavras vazias para manifestar julgamentos de caráter moralizante:



O problema dos posseiros e a luta pela terra não têm senti¬do, pois perturbam a ordem estabelecida.

Deve-se respeitar o professor porque, afinal de contas, na es¬cola ele é uma autoridade.



O defeito de tais argumentações nem sempre reside no princí¬pio que defendem, mas no modo como se faz a defesa dele. Muitas vezes, um bom princípio pode ser desvalorizado por causa de um ar¬gumento vazio.

A boa argumentação deve ser usada de maneira adequada a ca¬da situação concreta, levando em conta todos os componentes en¬volvidos na discussão. Pensar por fórmulas prontas é um mau sinto¬ma: denuncia falta de espírito crítico e de competência para elabo¬rar um raciocínio próprio; é, enfim, uma sujeição preguiçosa ao pon¬to de vista circulante no meio social.



2) Emprego de noções de totalidade indeterminada

Nas redações dos alunos, também com freqüência, ocorrem pa¬lavras de abrangência tão vasta que comprometem o esquema argu¬mentativo exatamente por causa do inconveniente de envolverem, num conjunto indeterminado e impreciso, dados de realidade que têm em comum apenas alguns aspectos. Há afirmações que consti¬tuem verdadeiras afrontas a uma reflexão analítica mais cuidadosa:



Todos os políticos são iguais: só querem o poder para encher os próprios bolsos.

O comunismo e o capitalismo, no fundo, são a mesma coisa.

Os países latino-americanos são diferentes em tudo: nos há¬bitos, nos costumes, na concepção de vida, nos valores. etc.

O uso dessas noções totalizadoras também compromete a for¬ça argumentativa do texto, pois dá margem a contra-argumentações imediatas. Basta contrapor, por exemplo, que nem todos os países latino-americanos são diferentes ou que não são diferentes em tudo: a Venezuela, por exemplo, possui o mesmo sistema de governo da Colômbia, ambos os países falam o castelhano, a maioria da popula¬ção é católica, ambos os países são de colonização espanhola.

Esse modo de argumentar demonstra falta de visão analítica, falta de informação e é sintoma de uma mente preguiçosa, que apa¬ga, por simplismo ou por comodismo, as diferenças e as reduz a uma sombra neutra que esconde dados completamente diferentes.

TEXTO COMENTADO

Os empresários precisam agir.

Pode-se prever que os ideólogos do capitalismo de Estado usarão todos os apelos populistas de que puderem valer-se para in¬troduzir no texto constitucional um forte golpe contra a iniciati¬va privada no campo econômico. Como se sabe, é muito fácil ace¬nar para desempregados com benefícios e sinecuras que, em mui¬tos casos, constituem a essência das empresas estatais, ineficien¬tes por natureza, destituídas de qualquer competitividade pelas situações de monopólio e oligopólio nas quais atuam. São empre¬sas que utilizam o dinheiro do contribuinte para cobrir seus défi¬cits constantes e podem ser apontadas como as maiores responsá¬veis pelo desastre financeiro do governo federal.

As empresas estatais conferem poder político através do po¬der econômico que têm. Alargar seu raio de ação em detrimento da iniciativa privada é uma tentação considerável para muita gen¬te. Tenho certeza de que se assistirá a uma verdadeira batalha na Assembléia Constituinte, travada por muitos segmentos ali re¬presentados, para a conquista de um campo maior de ação para as empresas estatais.

Diante dessa ameaça, os defensores da livre iniciativa não po¬dem ficar inertes. Os empresários, tenho repetido muito ultima¬mente, devem evitar que a Constituinte seja tomada de assalto pela demagogia. É por isso que defendo a utilização de recursos humanos e financeiros, por parte do empresariado, para eleger o maior número possível de representantes que venham a se contra- por na Constituinte à tendência estatizante que domina parte da classe política.

Naturalmente, não estou aqui sugerindo que se faça qual¬quer coisa ilegal. Espero mesmo que se tomem providências rapi¬damente para regulamentar o uso de dinheiro nas campanhas pa¬ra a Constituinte, de maneira que tudo seja feito às claras e den¬tro de normas aceitáveis. O dinheiro, nesse caso, deve ajudar na consolidação de ideais democráticos e não funcionar em prejuízos deles. O que sugiro é a ação dos empresários em defesa aberta e decidida da livre iniciativa no momento em que se prepara a futu¬ra Constituição. (V ALENTE. César Rogério. -. Veja. 26 jun. 1985.)



Como se pode notar pela leitura do texto inteiro, o articulista pretende convencer os empresários de que eles precisam unir esfor¬ços para evitar que o novo texto constitucional se volte contra a ini¬ciativa privada no campo econômico.

Em outros termos, o texto quer assumir a defesa da iniciativa privada e opor-se às empresas estatais. Para conseguir esse resultado, o articulista procura usar certos procedimentos argumentativos, que contêm defeitos. Vamos apon¬tar alguns.

a) Utilização de conceitos e afirmações genéricos

O texto diz que as empresas estatais são ineficientes por nature¬za e, para confirmar essa afirmação, usa o argumento de que tais em¬presas são destituídas de competitividade, isto é, são empresas que não têm concorrentes no mercado.

Dizer que essas empresas são, por natureza, ineficientes signifi¬ca dizer que todas as empresas estatais, sem nenhuma exceção se¬quer, não têm eficiência.

O argumento é frágil pelo seu grau de generalidade, pois bas¬ta a alguém citar uma s6 empresa estatal eficiente para desautorizar o argumento usado pelo articulista. E não é difícil, entre tantas em¬presas estatais, encontrar ao menos uma que sirva de exemplo para contra-argumentar.

b) Uso de conceitos que se contradizem entre si

Observe-se esta passagem do texto - "Como se sabe, é mui¬to fácil acenar para desempregados com benefícios e sinecuras que, em muitos casos, constituem a essência das empresas estatais..."

Ao fazer essa afirmação, o produtor do texto cai em contradi¬ção, já que aquilo que constitui a essência de um objeto qualquer necessariamente está presente neste objeto a não ser que não faça parte da sua essência.

Ora, se os benefícios e as sinecuras (= emprego rendoso e de pouco trabalho) são constituintes da essência das empresas estatais, então não tem sentido fazer a restrição a muitos casos. Ou o empre¬guismo faz parte da essência dessas empresas e existe em todas sem exceção, ou existe apenas em muitas delas e, portanto, não faz par¬te da sua essência.

c) Instauração de falsos pressupostos

O texto, no seu todo, leva-nos a aceitar o pressuposto de que as empresas privadas não usam o poder econômico para influir no poder político.

Esse pressuposto se depreende a partir da afirmação de que "As empresas estatais conferem poder político através do poder eco¬nômico que têm". Isso é usado pelo articulista como um argumen¬to contrário às empresas estatais apenas, o que leva a pressupor que as empresas particulares' não usarão o poder econômico para conse¬guir poder político.

Ora, esse pressuposto demonstra-se falso a partir da própria contradição em que cai o articulista quando, ao final do texto, pro¬põe que os defensores da empresa privada utilizem recursos financei¬ros para eleger o maior número possível de deputados e, com isso, interferir nas decisões políticas da Constituinte.

d) Emprego de noções confusas

O articulista faz uso de certos conceitos que precisariam ser mais bem definidos: que é "demagogia"? Que são "ideais democrá¬ticos" que serão consolidados com o uso de dinheiro para eleger constituintes?

Esses dois elementos são muito vagos: o primeiro (demagogia) é um universal negativo usado para desqualificar as propostas e o discurso do adversário; o segundo (ideais democráticos), um univer¬sal positivo, que justifica as mais contraditórias posições. Sem defi¬nição desses termos, os argumentos esvaziam-se.