Defeitos de argumentação II


Defeitos de argumentação (II)

1) Emprego de noções semiformalizadas



Há certos termos que, na linguagem científica, ocorrem com um significado preciso, restrito a esse tipo de linguagem, e que por isso devem ser empregados com o rigor que assumem nesse contex-to específico. Exemplo disso são palavras ou expressões do tipo: sis¬tema, estrutura, classe social, práxis, infra-estrutura, superestrutu¬ra, burguesia, corpo social, manipulação, cultura de massa, socialis-mo, idealismo, estruturalismo e tantos outros.

Nas suas redações, os alunos, às vezes para exibir erudição, em¬pregam esses termos em significado largo, afrouxado, conjugando in¬clusive termos de correntes científicas opostas entre si.

É preciso cuidado para empregar esses termos, caso contrário, os enunciados ficam desfigurados e descaracterizados por fundirem desencontradamente termos de correntes científicas distintas. Não se podem vulgarizar impunemente os termos científicos atribuindo¬-lhes uma significação subjetiva, às vezes até grosseira.

As duas frases que seguem podem ilustrar como o mau empre¬go desses termos pode produzir efeitos perturbadores:



Professores e alunos pertencem a classes sociais distintas: os primeiros. à burguesia; os últimos, ao proletariado.



Os conceitos de classe social, burguesia e proletariado estão em¬ pregados de maneira inadequada.

Na verdade, dentro de uma instituição social, um indivíduo po¬de ocupar uma posição superior e pertencer à mesma classe social daquele que ocupa uma posição inferior.

A burguesia, por exemplo, é constituída pelos proprietários de indústrias; o proletariado é constituído por todos aqueles que en¬tram com a mão-de-obra para a produção de bens. Esses conceitos nada têm que ver com a posição de professores e alunos no interior da escola.

Ainda um outro tipo de enunciado com o mesmo defeito:



Não se deve negar ao cidadão o direito de protestar: isso já é comunismo.



o enunciador da frase deve acreditar que o comunismo seja si¬nônimo de governo autoritário, que não dá a menor liberdade para o cidadão. No caso, em vez de comunismo teria sido mais adequa¬do autoritarismo. Basicamente, comunismo é um sistema econômi¬co que não admite que os meios de produção (fábricas, terras, etc.) estejam nas mãos de particulares.



2) Defeitos de argumentação pelo exemplo, pela ilustração ou pelo modelo



Não é raro também que os alunos, nas redações, usem inade¬quadamente os exemplos concretos e as ilustrações como recursos de argumentação.

Antes de comentar esses desvios, convém deixar assentado que argumentar por meio de exemplos não constitui um procedimento defeituoso. Trata-se inclusive de um expediente útil, pois é uma for¬ma de revelar os dados que vão. servir de base para as conclusões

que virão posteriormente. .

Mas é preciso tomar cuidado para que o dado apresentado co¬mo exemplo seja verdadeiro, isto é, que corresponda a um dado da realidade, observável para quem quiser conferir.

Imagine-se uma passagem como a que segue:



No Brasil. a maioria da população ativa ganha acima de dez salários mínimos.



Esse dado é simplesmente falso, não corresponde à realidade, e dele não se pode concluir nada que tenha conteúdo de verdade.

Além da necessidade de partir de um dado verdadeiro, é preci¬so que a conclusão que se extrai esteja efetivamente implicada nele.

As redações escolares costumam apresentar muitos defeitos des¬se tipo: sem tomar o devido cuidado, os alunos acabam por citar fa¬tos e deles extrair conclusões que não se implicam logicamente e, com isso, comprometem seriamente a qualidade de seus trabalhos.



Esse tipo de defeito costuma ocorrer com mais freqüência nas narra¬tivas onde, depois de relatar uma seqüência de episódios, chegam a conclusões precipitadas, que não estão contidas necessariamente nos dados apresentados.



Citemos como exemplo alguns desses casos.



a) A conclusão contém uma generalização indevida, apressada e em geral preconcebida, e o fato narrado não tem valor comproba¬tório como no exemplo que segue:



Venho acompanhando pelo jornal um debate acalorado entre professores universitários a respeito de um tema da especialida¬de deles: literatura moderna. O debate. que se iniciou com dois professores e acabou envolvendo outros mais. terminou sem que se chegasse a uma conclusão uniforme. Isso nos leva a concluir que o homem não é mesmo capaz de entrar em entendimento e. por isso. o mundo está repleto de guerras.



Como se pode notar, a partir de um desentendimento específi¬co, numa situação concreta, chega-se a uma conclusão excessivamen¬te generalizante de que o homem (sem limite da extensão do concei¬to) é incapaz de entrar em entendimento. Um fracasso situado não implica necessariamente uma incapacidade total.



b) Outras vezes, a distância entre o fato narrado e a conclusão é ain¬ da maior, não havendo entre eles o menor ponto de contato.

Observe-se o exemplo que segue:



Eram oito horas da noite: horário de verão. O sol. aos pou¬cos caindo. parecia mergulhar nas profundezas do mar. deixando atrás de si um rastro de cores indefiníveis e uma atmosfera de mistério e compenetração. Contagiado por aquele momento de grandioso espetáculo da natureza. acabei por concluir que a vida é cheia de altos e baixos e que precisamos enfrentar com coragem as dificuldades e exultar com vibração diante do sucesso.



Como se vê, esse tipo de conclusão não foi encaminhado pelo relato anterior, que descreve apenas o grandioso espetáculo. Nele, portanto, há referência apenas aos momentos altos da vida, e não aos baixos, que só aparecem na conclusão. Como vimos estudando até aqui, o texto deve ter unidade, e as partes devem implicar-se. Es¬sa reflexão final não pode, em si mesma, ser qualificada de falsa, mas pode-se dizer que ela não está implicada no relato anterior e po¬deria prescindir completamente dele.



c) As redações podem apresentar ainda defeitos mais gritantes nes¬se particular, havendo casos em que o relato apresentado encami¬nha para uma conclusão e o narrador tira outra, completamente contrária.



Na festa não havia nenhum conhecido. As pessoas que me convidaram tiveram de sair às pressas e eu fiquei completamen¬te só. Nunca experimentei uma solidão tão grande no meio de tan¬ta gente. Ia até o banheiro. olhava no espelho e minha imagem re¬fletida era a única cara conhecida. Tentei alguns contatos mas... que nadar O pessoal era fechado demais. No fim. desanimado. sen¬tei-me num sofá e fiquei plantado até quase o final da festa.

Mas valeu. Afinal de contas voltei para casa e não me arre¬pendi de ter ido à festa. pois novos relacionamentos sempre aca¬bam enriquecendo a gente.



Na verdade, o relato encaminhava para uma conclusão contrá¬ria. O que ele diz é que o narrador não conseguiu nenhum novo rela¬cionamento, a menos que ele tenha ocultado sem explicar por quê.

Abruptamente, surge uma conclusão inesperada, o que quebra a unidade do texto e faz o relato precedente perder toda a força de argumentação.

Como comentário final a esses três casos de argumentação por exemplos, que partem da citação de fatos particulares, vamos insis¬tir na necessidade de que a conclusão seja sempre um desfecho cui¬dadosamente pensado pelo aluno e não uma fórmula pronta e apres¬sada que se encaixa no final, perdendo de vista tudo o que foi relata¬do antes. Se os fatos anteriores não têm nenhuma relação funcional com a conclusão, então não precisam ser contados. O texto tem que preservar sua unidade.

Ao lado da argumentação através de exemplos, existe a argu¬mentação através da ilustração, que consiste em comprovar com da¬dos concretos uma afirmação de caráter geral. Um dos defeitos mais comuns nesse caso consiste em partir de uma afirmação geral pressupostamente verdadeira e arranjar alguns exemplos inconsisten¬tes para tentar confirmá-la.

Imaginemos uma afirmação precipitada do tipo:



O brasileiro é um povo indolente.



Para não deixá-la no ar, o aluno arrola um exemplo concreto, ci¬tando homens e mulheres de boa saúde que pedem esmola nas ruas. Para desmontar esse tipo de argumentação inconsistente, bas¬ta citar milhares de brasileiros que saem de suas casas de madruga¬da, superlotam os metrôs, trabalham de sol a sol e retomam ao lar à noite para, no dia seguinte, recomeçar tudo.



A ilustração pode ser usada como expediente" para argumentar, mas quando é representativa, isto é, quando se trata da concretiza¬ção particular de um dado geral.



Para finalizar esta lição em que tratamos dos principais defei¬tos de argumentação encontrados nas redações escolares, sobretudo nas dos vestibulares, resta falar do modo de argumentar através da apresentação de um modelo para ser seguido ou para ser rejeitado.

Narra-se uma conduta exemplar, como a caridade de alguém que dedica sua vida aos pobres e conclui-se que assim devemos pro¬ceder. Pode-se fazer o inverso, isto é, relatar uma conduta reprová¬vel e concluir que nunca devemos agir assim. Trata-se de um esque¬ma bastante utilizado em certas narrativas infantis, que têm sempre um caráter moralizante, e, por isso mesmo, tendem a cair no lugar¬-comum, na solução fácil. Não é que não se possa ser bem-sucedi¬do seguindo um modelo desse tipo, mas é preciso usá-lo com crité¬rio. No geral, as redações escolares que optam por essa saída repro-duzem modelos de conduta completamente estereotipados e falsos: as crianças são sempre puras, os pobres sempre honrados e sensíveis, os jovens são fúteis e rebeldes, etc.

A redação deve ser um ato de reflexão pessoal e não a reprodu¬ção automática de valores e crenças preconceituosas.